
No interior do Rio Grande do Sul, ainda é comum encontrar jornais impressos sobre balcões de cafés e lojas familiares. Suas páginas, marcadas por dedos e pelo aroma do café recém-passado, narram aniversários de moradores, decisões políticas e crônicas que mais parecem confidências entre amigos. Em tempos de telas e atualizações incessantes, o papel resiste – não como relíquia, mas como testemunha do cotidiano.
Um panorama das últimas cinco décadas
Nas décadas de 1970, especialmente no período de 1975, o Rio Grande do Sul abrigava cerca de 120 a 150 jornais locais e regionais – boa parte deles semanais ou quinzenais. Essas publicações tinham tiragens modestas, mas cumpriam a importante função de registrar a vida em pequenas e médias cidades. Foi uma época marcada tanto pela busca de identidade regional quanto por um contexto político de censura e vigilância, que acabava por moldar a atuação dos veículos de imprensa.
Cinco décadas depois, diante da internet e dos grandes portais de notícia, o número de títulos impressos no estado se mantém surpreendentemente significativo, girando em torno de 180 a 200. Embora muitas redações tenham se adaptado ao meio digital, ainda há quem prefira sentir a textura do papel ao ler as notícias da cidade. Esse movimento de resistência do impresso está ligado à identidade das comunidades: o jornal local, afinal, é o documento vivo de casamentos, formaturas, inaugurações de praças e efervescências culturais que, sem ele, ficariam perdidas no vasto mar de informação online.
A semente que germinou em Ibirubá
É nesse cenário de efervescência do jornalismo regional que surge, em 28 de fevereiro de 1975, o Jornal O Alto Jacuí, semanário cuja história se confunde com a própria evolução da imprensa no interior do estado. A origem do OAJ remete aos anos 1950, quando Justino Guimarães Neto desembarcou em Ibirubá e, em 1954, fundou a Gráfica Mérito. O espaço não passava de um conjunto de máquinas gráficas simples, mas logo revelou seu potencial para abrigar um sonho maior: imprimir o noticiário da região.
Justino trazia no sangue a paixão por notícias. Antes mesmo de ter seu próprio veículo, colaborava em suplementos de outros jornais, até ter o vislumbre de montar um periódico independente. A primeira edição foi celebrada com entusiasmo não apenas na cidade, mas também nas localidades do interior, e distribuída gratuitamente para conquistar o coração dos leitores.
Viajando entre linotipos e estradas de chão
Nos anos iniciais, o jornalismo em Ibirubá não era tarefa simples. A diagramação do Alto Jacuí acontecia na própria Gráfica Mérito, mas a impressão precisava ser feita em Cruz Alta. Isso implicava reunir textos, fotos e chapas, colocá-los em algum transporte disponível e enfrentar estradas muitas vezes esburacadas ou enlameadas. Enquanto hoje as páginas de um jornal podem ser enviadas via internet em segundos, naquele tempo era preciso paciência, perseverança e, acima de tudo, determinação.
Valdir, um dos primeiros funcionários da gráfica, começou a trabalhar aos 13 anos, aprendendo na prática a operar máquinas e organizar a rotina de produção. E assim, meio a cheiro de tinta e barulho de linotipos, nasciam as edições que, semana após semana, chegavam à mesa dos moradores de Ibirubá e dos municípios vizinhos.
O “respingo” de Justino
Talvez o maior símbolo da alma d’O Alto Jacuí estivesse nos editoriais de Justino Guimarães Neto, carinhosamente conhecidos como “editorial do véio Justino” ou “respingo”. Nessas linhas diretas e corajosas, ele comentava a realidade local, elogiava iniciativas, apontava falhas, criticava a gestão pública quando julgava necessário – sem temer possíveis repercussões. Esse posicionamento firme ajudou a construir a credibilidade do jornal, que se tornou fonte de discussão e de reflexão na comunidade.
Com o passar dos anos, o semanário ganhou repórteres, colunistas e colaboradores em diferentes áreas, reforçando o compromisso de abarcar notícias de todo o Alto Jacuí. Assim, o jornal não só registrava as transformações de Ibirubá, mas também acompanhava a vida cultural, política e social de cidades vizinhas.
A força da memória impressa
Tal qual outros periódicos regionais, O Alto Jacuí se tornou um depositário da história local: a cada edição, reunia fatos que, mais tarde, serviriam de referência para pesquisadores e estudantes interessados em entender como se deu o desenvolvimento do município e de suas redondezas. É nesse aspecto que o jornalismo impresso mostra uma de suas maiores virtudes: a capacidade de eternizar momentos em papel, funcionando como guardião de memórias, eventos, costumes e personagens que definem a essência de uma região.
Apesar do falecimento de Justino, em 2002, seu legado continuou nas mãos de familiares e, posteriormente, de novos proprietários. A redação passou por modernizações, adotou tecnologias digitais e até navegou pelas redes sociais, mas conservou a missão de informar de forma confiável e aproximar os leitores dos acontecimentos que afetam sua vida cotidiana.
A persistência que atravessa gerações
Se há algo que une os jornais impressos do Rio Grande do Sul, é o laço íntimo com a comunidade. De ontem para hoje, o público pode até ter mudado seus hábitos de consumo de notícias, mas a busca por informações locais e por uma abordagem próxima segue firme. Em um mundo dominado pela velocidade do online, o semanário impresso chega com calma, convidando o leitor a descobrir as novidades de sua cidade entre páginas que podem ser guardadas, repassadas, relidas ou até mesmo emolduradas como recordação.
Passados quase 50 anos desde a circulação da primeira edição, O Alto Jacuí segue vivo, provando que o jornalismo local encontra amparo em quem deseja ver suas histórias registradas com capricho e, por vezes, com uma pontinha de orgulho. Como um roteiro de cinema escrito em letras de chumbo, essas páginas resistem ao tempo, mantendo acessa a chama daquele sonho que Justino Guimarães Neto trouxe na mala ao chegar em Ibirubá: contar as histórias da região, contribuir para o debate público e eternizar em preto e branco os cotidianos que nos formam.